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06 de Outubro de 2011 - Por: Sergio Cavalieri Filho

A Responsabilidade Civil Objetiva e Subjetiva do Estado - por Sergio Cavalieri Filho


A responsabilidade objetiva conquistou e consolidou expressivo espaço no Direito brasileiro, mormente a partir do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e do Código Civil de 2002; chegou primeiro, entretanto, na responsabilidade civil do Estado, que é objetiva desde a Constituição de 1946. Nem por isso o tema se mostra exaurido na sua complexidade; muitos aspectos remanescem controvertidos, entre os quais aquele que nos propomos abordar.

1.1 - O § 6º do artigo 37 da Constituição de 1988.


A Constituição de 1988 disciplinou a responsabilidade civil do Estado no § 6º do seu artigo 37, que tem a seguinte redação: "As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa".


1.2 - Acolhimento da teoria do risco administrativo


O exame desse dispositivo revela, em primeiro lugar, que o Estado só responde objetivamente pelos danos que os seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. A expressão seus agentes, nessa qualidade, está a evidenciar que a Constituição adotou expressamente a teoria do risco administrativo como fundamento da responsabilidade da Administração Pública, e não a teoria do risco integral, porquanto condicionou a responsabilidade objetiva do Poder Público ao dano decorrente da sua atividade administrativa, isto é, aos casos em que houver relação de causa e efeito entre a atuação do agente público e o dano. Sem essa relação de causalidade não há como e nem porque responsabiliza-lo objetivamente.


Em voto paradigma prolatado no início da década de noventa ( RE nº130.764-PR. 1992), pontificou o Ministro Moreira Alves: "A responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no art. 107 da Emenda Constitucional nº 1/69 ( e, atualmente, no § 6º do artigo 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros".


Em apertada síntese, a teoria do risco administrativo importa atribuir ao Estado a responsabilidade pelo risco criado pela sua atividade administrativa. Essa teoria surge como expressão concreta dos princípios da equidade e da igualdade de ônus e encargos sociais. É a forma democrática de repartir os ônus e encargos sociais por todos aqueles que são beneficiados pela atividade da Administração Pública.


Com efeito, se a atividade administrativa do Estado é exercida em prol da coletividade, se traz benefícios para todos, justo é, também, que todos respondam pelos seus ônus, a serem custeados pelos impostos. O que não tem sentido, nem amparo jurídico, é fazer com que um ou apenas alguns administrados sofram todas as conseqüências danosas da atividade administrativa.


Em suma, "o fundamento da responsabilidade estatal é garantir uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos. De conseqüente, seu fundamento é o princípio da igualdade, noção básica do Estado de Direito" ( Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 15ª ed., Malheiros Editores, p. 866).


Nesta fase, descarta-se qualquer indagação em torno da culpa do funcionário causador do dano, ou, mesmo, sobre a falta do serviço ou culpa anônima da Administração. Responde o Estado porque causou o dano ao seu administrado, simplesmente porque há relação de causalidade entre a atividade administrativa e o dano sofrido pelo particular.


1.3 - Relação entre o ato do agente ou da atividade administrativa e o dano.


Nesse terreno, a única questão que ainda enseja certa dificuldade é a que diz respeito à relação que deve existir entre o ato do agente ou da atividade administrativa e o dano. Terá o ato que ser praticado durante o serviço, ou bastará que seja em razão dele? De acordo com a essência de vários julgados, o mínimo necessário para determinar a responsabilidade do Estado é que o cargo, a função ou atividade administrativa tenha sido a oportunidade para a prática do ato ilícito.


Sempre que a condição de agente do Estado tiver contribuído de algum modo para a prática do ato danoso, ainda que simplesmente lhe proporcionando a oportunidade para o comportamento ilícito, responde o Estado pela obrigação ressarcitória. Não se faz mister, portanto, que o exercício da função constitua a causa eficiente do evento danoso; basta que ela ministre a ocasião para praticar-se o ato. A nota constante é a existência de uma relação entre a função pública exercida pelo agente e o fato gerador do dano.


Em suma, haverá a responsabilidade do Estado sempre que se possa identificar um laço de implicação recíproca entre a atuação administrativa (ato do seu agente), ainda que fora do estrito exercício da função, e o dano causado a terceiro.


Em acórdão da relatoria do eminente Ministro Carlos Mario Velloso, no RE 160.401 - SP, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal assim se posicionou sobre a questão: "Constitucional - Administrativo - Responsabilidade civil do Estado - Constituição Federal, art. 37, § 6º - Agressão praticada por soldado, com a utilização de arma da corporação: incidência da responsabilidade objetiva do Estado, mesmo porque, não obstante fora do serviço, foi na condição de policial-militar que o soldado foi corrigir as pessoas. O que deve ficar assentado é que o preceito inscrito no art. 37, § 6º, da Constituição Federal não exige que o agente público tenha agido no exercício das suas funções, mas na qualidade de agente público" (RTJ 170/631).


Não basta, portanto, para emergir a responsabilidade do Estado, que o ato ilícito tenha sido praticado por agente público. É também preciso que a condição de agente estatal tenha contribuído para a prática do ilícito, ainda que simplesmente proporcionando a oportunidade ou ocasião para o comportamento ilícito. A contrario senso, o Estado não poderá ser responsabilizado se o ato ilícito, embora praticado por servidor, este não se encontrava na qualidade de agente público.


Mais recentemente, no RE nº363423/SP, Relator o Ministro Carlos Brito, o Supremo Tribunal Federal voltou a posicionar-se nesse sentido. Cuidava-se de um policial militar, em período de folga, que, vivendo momento de desacerto sentimental com a mulher com a qual mantinha relacionamento amoroso e sentindo-se desprezado por ela, utilizou-se da arma da corporação e contra ela desferiu tiros. Os Ministros que integram a Primeira Turma do STF, após judiciosas considerações sobre o caso, decidiram unanimemente: "Responsabilidade Civil do Estado. Lesão Corporal. Disparo de Arma de Fogo Pertencente à Corporação. Policial Militar em Período de Folga. Nessa contextura, não há falar em responsabilidade civil do Estado. Recurso extraordinário conhecido e provido". Da motivação do voto do eminente Relator, Ministro Carlos Brito, colhe-se os seguintes fundamentos: "Não vislumbro, na espécie, o indispensável nexo de causalidade entre a conduta do policial e o dano sofrido pela mulher: ele não estava no exercício de sua atividade funcional, nem dessa condição se arvorou para agredir a mulher; não estava em missão policial, nem agia, em período de folga, em defesa da sociedade. Sua conduta estava impregnada de sentimento pessoal: o sentimento que nutria pela mulher. Moveu-o exclusivamente a sua singularidade pessoal. Não praticou qualquer ato administrativo e, por estar a conduzir bem ou mal sua vida pessoal, seus interesses privados, seu deslize emocional, o desequilíbrio de sua conduta não autorizam impor-se ao Estado o dever de indenizar a vítima, sob o fundamento de estar patenteada a sua responsabilidade objetiva, e tão-só porque sua profissão é de servidor público policial militar, tendo ele se utilizado de arma da corporação para agredir aquela com quem mantinha relacionamento amoroso.


"Os fatos incontroversos constantes dos autos não demonstram qualquer nexo de causalidade entre o dano sofrido e o serviço público do qual é agente, fora de sua vida privada, o policial. O Estado não pode responder por dano causado por alguém que não é seu agente ou que, embora o seja, não esteja, quando da prática do ato que deu causa ao dano, no desempenho das atribuições do seu cargo, função ou emprego público. Francisco Campos referira já, hipótese em que um agente postal, defrontando com um seu desafeto, no guichê do correio, desfecha-lhe um tiro. O ato não pode ser atribuído ao mau funcionamento do serviço e, muito menos, ao seu funcionamento normal. Trata-se de ato inteiramente pessoal, inimputável ao serviço. Assim, não atuando o agente público nessa qualidade, o dano que causar a terceiro decorre de sua vida privada e sua responsabilidade é pessoal, regida pelo direito civil".


2 - A questão da bala perdida.


É por esse enfoque que deve ser examinada e resolvida a questão da bala perdida que, no Rio de Janeiro, tem sacrificado centenas de pessoas. No confronto entre policiais e bandidos, pessoas inocentes são atingidas. Deve o Estado responder nesses casos? A resposta é indiscutivelmente positiva porque o dano (morte ou ferimento de um transeunte) teve por causa a atividade administrativa. Em que pese o entendimento em contrário, é desnecessário saber se a bala partiu da arma do policial ou do bandido; relevante é o fato de ter o dano decorrido da ação desastrosa do Poder Público.


A responsabilidade civil do Estado, repita-se, é objetiva pelo risco da atividade. Terá o Poder Público que exercê-la, portanto, com a absoluta segurança, mormente quando extremamente perigosa, como é a atividade policial, de modo a garantir a incolumidade dos cidadãos. Destarte, sempre que o dano resultar da atividade estatal, haverá o dever de indenizar objetivamente. Se a vítima foi atingida na troca de tiros entre policiais e bandidos, não há dúvida de que a ação dos agentes contribuiu de forma decisiva para o evento, pelo que indiscutível o dever de indenizar do Estado.


Só não haverá esse dever de indenizar nos casos de bala perdida mesmo, isso é, aquela que não se sabe de onde veio, de onde partiu, que não guarda nenhuma relação com a atividade policial.


A jurisprudência, por sua vez, já tem entendimento firmado nesse sentido: "Responsabilidade Civil do Estado. Danos Materiais e Morais. Ação Policial. Perseguição em Via Pública. Vítima Atingida por Projétil de Arma de Fogo. Bala perdida. Indenização por Danos Morais e Materiais. Configuração (....) O ponto central de controvérsia nos autos se concentra na existência ou não de responsabilidade civil do Estado quando agentes públicos (policiais militares), empreendendo perseguição a bandidos, com estes trocam tiros em via pública de alto tráfego de veículos e pedestres, resultando, desse tiroteio, lesões de natureza grave em terceiro, vítima inocente (...) A responsabilidade civil do Estado, pelos danos causados a terceiros, decorrentes da atuação dos agentes públicos, nessa qualidade, é objetiva" (REsp 1056605 - RJ, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma do STJ).


3- A responsabilidade subjetiva do Estado


A responsabilidade civil do Estado é sempre objetiva? Subsiste no Direito brasileiro alguma hipótese de responsabilidade subjetiva das pessoas jurídicas de direito público? Acerca desta questão temos hoje três correntes distintas.


Sustenta a primeira que após o advento do Código Civil de 2002 não há mais espaço para a responsabilidade subjetiva das pessoas jurídicas de direito público porque o artigo 43 do novo Código Civil, que praticamente repete o teor do artigo 37, § 6º da Constituição, trouxe à legislação civil infraconstitucional a teoria do risco administrativo para embasar a responsabilidade civil do Estado, revogando o artigo 15 do Código Civil de 1916 que servia de suporte legal para a responsabilidade subjetiva. Assim, quer pela ausência de norma legal neste sentido, quer em razão de regras explicitas e específicas em sentido contrário, que determinam a incidência da responsabilidade civil objetiva, baseada na teoria do risco, não haveria mais espaço para sustentar a responsabilidade subjetiva das pessoas jurídicas de direito público. Nesse sentido, por todos, a doutrina de Flávio Willeman - Responsabilidade das Agências Reguladoras, Lúmen Júris, 2005, p.22 e sg.


A segunda corrente, capitaneada pelo festejado jurista Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 15ª ed., Malheiros Editores, ps. 871-872), sustenta ser subjetiva a responsabilidade da Administração sempre que o dano decorrer de uma omissão do Estado. Pondera que nos casos de omissão, o Estado não agiu, não sendo, portanto, o causador do dano, pelo que só estaria obrigado a indenizar os prejuízos resultantes de eventos que teria o dever de impedir. Aduz que "a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por ato ilícito. E, sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado (embora do particular possa haver) que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado propósito de violar a norma que constituía em dada obrigação".


Integramos a corrente intermediária, para a qual a responsabilidade subjetiva do Estado, embora não tenha sido de todo banida da nossa ordem jurídica, só tem lugar nos casos de omissão genérica da Administração, como haveremos de expor, e não em qualquer caso de omissão, conforme sustenta a segunda corrente.


Com efeito, o fato de não ter sido reproduzido no Código Civil de 2002 o artigo 15 do Código Civil de 1916 não permite concluir que a responsabilidade subjetiva do Estado foi banida de nossa ordem jurídica. A responsabilidade subjetiva é a regra básica, que persiste independentemente de existir ou não norma legal a respeito. Todos respondem subjetivamente pelos danos causados a outrem, por um imperativo ético-jurídico universal de justiça. Destarte, não havendo previsão legal de responsabilidade objetiva, ou não estando esta configurada, será sempre aplicável a cláusula geral da responsabilidade subjetiva se configurada a culpa, nos termos do artigo 186 do Código Civil.


A regra, com relação ao Estado, é a responsabilidade objetiva fundada no risco administrativo sempre que o dano for causado por agente público nessa qualidade, sempre que houver relação de causa e efeito entre a atuação administrativa e o dano. Resta, todavia, espaço para a responsabilidade subjetiva nos casos em que o dano não é causado pela atividade estatal, nem pelos seus agentes, mas por fenômenos da natureza - chuvas torrenciais, tempestades, inundações - ou por fato da própria vítima ou de terceiros, tais como assaltos, furtos acidentes na via pública etc. Não responde o Estado objetivamente por tais fatos, repita-se, porque não foram causados por sua atividade; poderá, entretanto, responder subjetivamente com base na culpa anônima ou falta do serviço, se por omissão (genérica) concorreu para não evitar o resultado quando tinha o dever legal de impedi-lo.


3.1 Omissão específica e genérica


Como vimos, para uma prestigiada corrente a responsabilidade do Estado é sempre subjetiva no caso de omissão. "Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E se não foi o autor, só cabe responsabiliza-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar o evento lesivo"(Celso Antônio Bandeira de Mello - Elementos de Direito Administrativo, 2ª ed., RT. P.344).


Em nosso entender, o artigo 37, § 6º da Constituição não se refere apenas à atividade comissiva do Estado; pelo contrário, a ação a que alude engloba tanto a conduta comissiva como omissiva. E tal entendimento encontra respaldo em inúmeros precedentes da Suprema Corte: "Como se sabe, a teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros, desde a Carta Política de 1946, revela-se fundamento de ordem doutrinária subjacente à norma de direito positivo que instituiu, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civil objetiva do Poder Público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, por ação ou por omissão (CF, art. 37, §6º). Essa concepção teórica - que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, tanto no que se refere à ação quanto no que concerne à omissão do agente público - faz emergir, da mera ocorrência de lesão causada à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la ...., não importando que se trate de comportamento positivo (ação) ou que se cuide de conduta negativa (omissão) daqueles investidos da representação do Estado"...( AI 299125/SP, Relator Ministro Celso de Mello). Por isso temos sustentado que, no caso de omissão estatal, é preciso distinguir a omissão específica da genérica, distinção essa hodiernamente reconhecida pela melhor e mais atualizada doutrina. A responsabilidade do Estado será subjetiva no caso de omissão genérica e objetiva no caso de omissão específica, pois aí há dever individualizado de agir.


Haverá omissão específica quando o Estado estiver na condição de garante (ou de guardião) e por omissão sua cria situação propícia para a ocorrência do evento em situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo; a omissão estatal se erige em causa adequada de não se evitar o dano. São exemplos de omissão específica: morte de detento em rebelião em presídio (Ap. Civ. 58957/2008, TJRJ); suicídio cometido por paciente internado em hospital público, tendo o médico responsável ciência da intenção suicida do paciente e nada fez para evitar (REsp. 494206/MG); paciente que dá entrada na emergência de hospital público, onde fica internada, não sendo realizados os exames determinados pelo médico, vindo a falecer no dia seguinte (Ap. Civ. 35985/2008, TJRJ); acidente com aluno nas dependências de escola pública - a pequena vítima veio a morrer afogada no horário escolar, em razão de queda em bueiro existente no pátio da escola municipal (Ap. Civ. 3611/1999, TJRJ). Em suma, a omissão específica, que faz emergir a responsabilidade objetiva da Administração Pública, pressupõe um dever específico do Estado, que o obrigue a agir para impedir o resultado danoso.


Em contra partida, a omissão genérica tem lugar nas hipóteses em que não se pode exigir do Estado uma atuação específica; quando a Administração tem apenas o dever legal de agir em razão, por exemplo, do seu poder de polícia (ou de fiscalização), e por sua omissão concorre para o resultado, caso em que deve prevalecer o princípio da responsabilidade subjetiva. São exemplos de omissão genérica: negligência na segurança de balneário público - mergulho em lugar perigoso, conseqüente tetraplegia; o infortúnio ocorreu quando a vítima, aos 14 anos, após penetrar, por meio de pagamento de ingresso, em balneário público, mergulhou de cabeça em ribeirão de águas rasas, o que lhe causou lesão medular cervical irreversível (REsp.418713-SP); queda de ciclista em bueiro há muito tempo aberto em péssimo estado de conservação, o que evidencia a culpa anônima pela falta do serviço (Ap. Civ. 4846/2008, TJRJ); estupro cometido por presidiário, fugitivo contumaz, não submetido à regressão de regime prisional como manda a lei - faute du service public caracterizada; a omissão do Estado constituiu, na espécie, o fator determinante que propiciou ao infrator a oportunidade para praticar o crime de estupro contra menor de 12 anos de idade, justamente no período em que deveria estar recolhido à prisão (REsp. 409203/RS); poste de ferro com um sinal de trânsito cai sobre idosa no calçadão de Ipanema - a base de metal que sustentava o sinal estava bastante enferrujada e acabou quebrando com o apoio da idosa (Globo, 12/07/2010)


Como se vê, na omissão genérica, que faz emergir a responsabilidade subjetiva da Administração, a inação do Estado não se apresenta como causa direta e imediata da não ocorrência do dano, razão pela qual deve o lesado provar que a falta do serviço (culpa anônima) concorreu para o dano, que se houvesse uma conduta positiva praticada pelo Poder Público o dano poderia não ter ocorrido.


3.2 Fatos da natureza


Em se tratando de fatos da natureza, a jurisprudência, aplicando tais princípios doutrinários aos casos concretos, dos mais variados matizes, definiu-se através de uma orientação uniforme, de que nos dá notícia Yussef Said Cahali, após analisar o conjunto abrangente de acórdãos de nossos Tribunais: "A Administração Pública será responsabilizada pela reparação dos danos sofridos pelos particulares, provocados por eventos inevitáveis da Natureza (chuvas torrenciais , inundações, alagamentos, desmoronamentos), desde que, por sua omissão ou atuação deficiente, deixando de realizar obras que razoavelmente lhe seriam exigíveis (ou as realizando de maneira insatisfatória), poderia ter evitado a causação do prejuízo, ou atenuado as suas consequências"( Responsabilidade Civil do Estado, Malheiros Editores, 2ª ed. P. 58)


Cahali arremata dizendo que, embora a razoabilidade dependa de prudente arbítrio do Poder Judiciário, a ser aplicado caso a caso, nesse conceito precípuo reside o núcleo da perquirição da responsabilidade pública, de modo a concluir se a omissão ou atuação deficiente figurou como causa exclusiva ou concorrente do dano.


4 - Conclusão


Em conclusão, quando não se pode exigir do Estado uma atuação específica, tendo este, entretanto, um dever genérico de agir, e o serviço não funciona, funciona mal ou funciona tardiamente, haverá omissão genérica, pela qual responde a Administração subjetivamente com base na culpa anônima; quando o Estado tem dever específico de agir e a sua omissão cria a situação propícia para a ocorrência do evento danoso, em situação que tinha o dever de agir para impedi-lo, haverá omissão específica e o Estado responde objetivamente.


O corolário dessa doutrina é o acórdão do Supremo Tribunal Federal, verdadeiro leading-case no tema, em que se decidiu que o Município do Rio de Janeiro omitiu-se especificamente no seu dever de garantir a incolumidade física de alunos de sua rede pública de ensino, a partir de quando os mesmos ingressam no recinto escolar. Na ocasião, condenou a municipalidade a ressarcir danos decorrentes de ferimento que cegou um aluno, provocado por seu colega, durante o horário escolar e dentro do estabelecimento de ensino público.


Vale, pela importância, reproduzir algumas passagens do voto do eminente relator, o Ministro Celso de Mello: "As circunstâncias do presente caso - apoiadas em pressupostos fáticos soberanamente reconhecidos pelo Tribunal a quo - evidenciam que o nexo de causalidade material restou plenamente configurado em face do comportamento omissivo em que incidiu o agente do Poder Público (funcionário escolar), que se absteve de adotar as providências reparatórias que a situação estava a exigir. Na realidade consta dos autos que, por incompreensível omissão administrativa, não só deixou de ser solicitado e prestado imediato socorro médico à vítima, mas, também, absteve-se a própria administração escolar de notificar os pais da aluna atingida, com a urgência que o caso requeria. É preciso enfatizar que o Poder Público, ao receber o menor estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno, os quais, muitas vezes, decorrem da inércia, da omissão ou indiferença dos servidores estatais. A obrigação de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontram no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se acharem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno - tal como no caso ocorreu - emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se achava sob guarda, atenção, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares"(RE 109615-RJ - RTJ nº 163/1107-1114).


Como se vê, o Pretório Excelso concluiu pela responsabilidade objetiva da municipalidade fulcrado na obrigação que os agentes públicos tinham de proteger a incolumidade física dos estudantes. O descumprimento desse dever constitui a omissão específica, que dá ensejo á obrigação de indenizar pelo critério objetivo. Só no caso de omissão genérica emerge a responsabilidade subjetiva do Estado.


Por: Sergio Cavalieri Filho


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